Carnaval de Chronos
As quaresmeiras vestiam um manto rosado e púrpuro e o céu era de um azul cobalto intenso, extinto nos últimos dias de meteorologia cinzenta e chuvas pesadas de verão.
O calor fazia com que nossas roupas colassem ao corpo e nos amarrava inertes a qualquer cadeira, em languidez e preguiça típicas dessa época do ano.
Era fevereiro, o carnaval já havia deixado seu rastro fazia dias e no ar só os rumores do Zé Pereira, da batucada, e os vivas dos sambistas de ocasião. O ar era inerte também. Nenhuma brisa, nem suspeita. Nas ruas esvaziadas da alegria passageira evaporavam memórias sob os pés em altas sandálias douradas e os sapatos brancos dos passistas que voltavam para o anonimato natural. Um vapor multicolorido, de confetes e serpentinas, de lavandas baratas, de liberdades e alforrias. Ninguém foi de ninguém. Mas a cidade contemplou, abraçou,mergulhou seu corpo gasto em lascívia obediente. A cidade se deitou com todos os amantes naquelas madrugadas lupercais. E não há dúvida, voltará para cobrar seu preço, como a uma grande dama em seus restos de Colombina.
Havia uma tristeza sólida, podia-se cortar com faca o ar insalubre. Poluição, medo e euforia, combinação estranha e verdadeira da metrópole. Cortante e passível de ser fatiada, a cidade. Fatias de solidão, de crimes, de abandono, de esperança cega e, possivelmente, ilusória, de esperança focada e certamente vitoriosa. Fatias. De gente, de falta e sobra de humanidade.
O ano só começa depois do carnaval!
Ouvi essa frase, quase um decreto, por toda a minha vida. O ano só começa mesmo depois do carnaval, pude comprovar com o pesar das pálpebras sobre minha retina povoada.
Meus dias de carnaval foram envoltos em penumbra e píxeis coloridos da TV. Houve uma tristeza contida, instigante, quase lírica. Ouvi os narradores, perdidos, repetindo as mesmas frases de todos os anos. Ouvi palavras que só navegam a telinha por essa época, essa foi a parte divertida. Bumbuns, ritmistas, celebridades duvidosas, gente de verdade e caricatos. A caricatura no carnaval sempre me interessou. As inverdades transformadas em fantasia. Quase um retrato do Brasil abandonado e que ainda ri sob seus disfarces. Nosso Brasil Pierrô. Mas também pude ver sorrisos e alguma originalidade, tudo antigo, gasto, mas ainda assim original na falta de pudor em se repetir. Há muita coragem na repetição.
Ouvi os blocos invadindo a pacata rua em que moro e os tímidos transeuntes, eu pude, ver acompanharem o ritmo do tamborim. Senhoras de chinelos e batas surradas, com o pão do café da tarde debaixo dos braços, se arrastando, bacantes deslocadas, atrás do cordão ruidoso e, supostamente, feliz. Crianças fantasiadas, cachorros em coleiras, bêbados malcheirosos, porteiros desertores, velhos vestidos de meninos e meninas. Todos fazendo coro e deixando se arrastar pelo cordão. Daqui de cima, da minha torre branca, senti uma melancolia sem precedente. Tantas vozes e arrastar de sandálias faziam os paralelepípedos remanescentes de o bairro parecerem bigornas nas mãos calejadas dos ferreiros. Vivo; tudo parecia vivo ou em contradição: agonizante. Uma ópera triste e provinciana. E o ano à espera de começar conferia parte dessa melancolia.
Talvez os anos sejam prisioneiros da nossa morosidade, da nossa incapacidade de antever, prever, vislumbrar. Talvez fiquem retidos, à espera, numa escuridão ou num vazio purgatório. Esperando ser sonhados. Aguardando, pacientes, que os dias, entregues àquele ano que já deveria ter se findado, definhem, sejam dissolvidos, devorados pela alegria exaustiva dos dias “gloriosos” de folia. Era essa, então, a função daqueles dias. O carnaval selava e encerrava o ano.
O carnaval, nosso Chronos tupiniquim, devorava o ano envelhecido.
Era madrugada; na TV, seguia o som repetido da bateria da Beija-Flor de Nilópolis. Pelas seis da manhã se juntariam a ela o frenesi e a gritaria da feira livre que agitava as calçadas ao redor. Olha a banana! Mais tarde um pouco, os vivas eufóricos da Vai-Vai campeã. Brasil reunindo seus restos, numa só voz.
O homem da madrugada, arrumando as frutas e verduras, à minha porta, nem sabia que era quarta-feira de cinzas, eu também não.
O vento começou a soprar e alguma esperança abriu os braços para receber, finalmente, um ano novo já cansado.
(Adriana Florence)
Picasso
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