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quarta-feira, 27 de março de 2013

Dia do Circo



Um texto do meu livro pra homenagear os artistas de Circo e os poetas...
debaixo da lona e fora dela. Debaixo da maior lona que nos une a todos, o céu.
A história de um homem que amava o Circo!

Espia Só


 
_ Espia só, Bisuca!


 A voz de meu avô soava alta e tomava conta de mim. Arrebatava-me de todas as maneiras. Sempre que ele chamava assim, sabia que ele tinha feito uma grande descoberta e queria compartilhar.

Meu avô esteve presente por toda a minha vida, mesmo muito tempo depois dele ter partido. Eu tinha 11 anos e foi minha primeira despedida.

Era jovem, de alma livre e pensamento imaginativo. Tinha lindas mãos muito claras e unhas cuidadas e perfeitas. Usava terno e gravata, mesmo na intimidade, o que me intrigava imensamente. Passava as noites acordado fazendo cálculos matemáticos complicados e escrevendo frases ou poemas sem conclusão ou finalidade.

Sempre só. Aprendi com ele a não ter pressa, mas urgência, e a jamais ter a necessidade de concluir. Aprendi a me bastar e a gostar da minha própria companhia. Dizia que era o que me restaria, mesmo cercada de gente.

E dizia também: casa-se com alguém que ama, mas com quem tenha as melhores conversas. Depois de muitos anos são elas que vão renovar o amor todo final de tarde.

Ele sabia quem eu carregava na água dos olhos, antes de transbordar.

Era médico e artista. Talvez um pouco criança e um tantinho maluco. Não bebia nada alcoólico. Tinha uma maneira discreta de se mover, hábitos peculiares e estranhos aos outros. Gostava de goiabada amassada com leite e frutas. Comia pouco ou quase nada. Acho que ele vivia de luz e descobertas.

Espírito de cientista. Era simples, sábio, e ocultava seu grande conhecimento e cultura das rodas sociais e familiares, dividindo-os, curiosamente, somente com os mais humildes e com as crianças.

Nariz adunco, calva elegante e grossos óculos escuros. Acho que nunca vi meu avô sem óculos. Mesmo que o céu estivesse aberto e claro, carregava um guarda chuva negro. Os sapatos de verniz ou couro brilhantes eram de cadarços. Dizia que o ato de amarrar os sapatos era o primeiro que tornava um homem independente para a vida inteira. Então, amarrava os seus, e lépido, cumpria uma agenda quase imaginária que era composta pelas visitas médicas aos enfermos nas fazendas e paradas estratégicas nos pontos de encontro da cidadezinha, tão pequena para aquele homem. Lamento até os dias de hoje que meu avô tenha sido anônimo para tantos e para outras crianças.

Gostava de Circo, amava os mágicos e palhaços! Todo o ano reunia as crianças da cidade e os netos, para um show de mágica e prestidigitação de um dono de Circo de nome Everaldo. Everaldo era um gigante de dois metros de altura e mãos enormes, nasceu na Romênia. Era a festa para nossos olhares incrédulos fazendo dançar entre os dedos bolas de bilhar coloridas e cartas de tarô cigano.
Havia tanta poesia e ternura naquelas horas em que a vida era um picadeiro.
A história de Everaldo e meu avô também era de um lirismo sem igual.

Meu avô havia curado a filha do mágico, muito doente, quando 40 anos antes  seu Circo passara por lá...em agradecimento, o mágico gigante com nariz de palhaço, viajava quilômetros para todos os anos, sem falhar um só, nos mimar com a presença do Circo na casa da minha infância.

(...)
O carro acelerou. Minhas malas acomodadas no banco de trás, faziam mais volume no meu coração que no espaço minúsculo daquele fusquinha prateado. Deixava para trás um presépio. A cidade pequena e coberta por fina neblina cabia na cerração dos meus olhos. Não havia vivido tantos anos lá, mas minhas memórias de infância mais queridas estavam naquelas montanhas e vales, e naquele momento me assombravam enquanto a estrada ficava cada vez mais longa através do espelho retrovisor.
Acenei tristemente para meu avô e vi seus olhos fundos aproximando-se dos meus, até se unirem nas mesmas águas. Lágrimas e emoções que compartilharíamos pela eternidade.

O acostamento, riscando de branco minhas lembranças, fazia uma linha que desaparecia em dois infinitos desconhecidos: o do meu passado e o do meu futuro incerto e cheio de mistérios nessa hora.
Crescer é demasiado doloroso e as cortinas de voal cobrindo as vidraças do quarto rosa, assemelhavam-se agora às bandeiras, que sempre vislumbrei nos meus sonhos e devaneios deitada em minha cama coberta de cetim. Nada do que eu deixava para trás se parecia comigo, mas induziram-me às certezas que não eram minhas, e à cores que nunca mais fariam parte da minha palheta, depois que parti.

Só meu avô, esse ficaria, colorindo meus dias com a curiosidade, a esperança, gentileza e doçura.

O mundo foi ficando grande e abrindo-se em muitos horizontes, enquanto atrás de mim as duas linhas abraçaram meu passado e encerraram a minha infância.
Mas a memória daqueles olhos doces, escondidos debaixo de grandes óculos de aros escuros, ficou em mim. Olhos que me perceberam ainda menina e descobriram nos meus a minha melhor parte
.


por Adriana Florence, do livro Anáguas

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