CANTÁRIDAS
Maya escondia debaixo daquela euforia e fala frenética um coração delicado, mas que recebia uma transfusão diária de pensamentos e muita imaginação. Incontrolável, bombeava idéias e divagações, filtradas sempre pelas emoções, para todo o corpo. Recebia um fluxo de memórias líquidas e depuradas. Sem memória não seria possível sentir com tamanha intensidade. A pele transpirava essas águas misteriosas que selam com outros corpos pactos de suor e eternidade. Era isso: Maya tinha a alma correndo pelas veias em caminhos indecifráveis e direções incertas. E vulva.
Certeza, só a de que o amor alimentava seu coração e conferia a ela a intensidade característica. O dia e as pessoas a abasteciam , era banhada pelas pessoas,por vezes em calma transparência, em outras formando grotões esquecidos e turvos, ou em redemoinhos de paixão e aflição.
Seguia pelos dias num matraquear incansável a esconder muitas de suas anáguas.
Era mais seguro assim, achava, navegar dentro de si não é tarefa fácil . Há que se ter a coragem dos marujos da poesia e dos ventos. Há que se atrever pela escuridão e se arriscar em meio a arrecifes. Perceber quando as águas ficam mexidas e mais salgadas. Se a calmaria não é ardil da natureza.Banhar-se de gente é maravilhoso,mas perigoso.
Naquele final de tarde havia se reunido a amigos e amigos de amigos num bar da cidade. Falava, falavam. Ninguém ouvia.
Os copos de cerveja transpiravam sobre a mesa e os cinzeiros transbordavam malcheirosos, misturados aos vapores oleosos da cozinha, de seus pastéis e bolinhos de arroz, e tudo mais que fartasse e pudesse ser acomodado naquelas barrigas vazias do dia de trabalho.
Estava bonita. Cabelos sem preparo de salão, desalinhados sobre a nuca clara. O triângulo formado entre a nuca, orelhas e pescoço, figurava como um luminoso, anunciando o caminho para as línguas caladas e hábeis dos mais contemplativos.Mesmo que fosse só imaginado ou desejado.
Olhou longamente a cena. Sempre gostava de fechar quadro a quadro os planos e personagens e, sem que ninguém percebesse, escrevia histórias ternas ou picantes observando os inocentes desavisados.
Escolhia o lugar à mesa e escorregava os pés lentamente pelo piso gorduroso até tocar em outro. Fechava os olhos e se dispersava em meio ao burburinho e gargalhadas ruidosas do salão. Sentia-se poderosa, dona da cena, exercendo o que denominara de libido social. Nem sempre era necessária a ousadia e invasão do corpo alheio: poderia seduzir por toda a noite, sem jogos, sem maneirismos, naturalmente. Olhava todos no centro da íris, vagueava por ali por minutos. Adorava concentrar a libido sentido a sentido. Um de cada vez. Cheirava as pessoas feito onça. Escolhia o lugar para sentar com movimentos sinuosos. Tocava de verdade as peles, beijava os rostos com vontade, sem aquele roçar desagradável de bochechas cheias de cerimônia. Abraçava com todo o corpo, sem afastar as ancas, os seios, como os corpos amedrontados, enfastiados de discursos, costumavam fazer ao se encontrarem. Gostava dos corpos, do seu e dos outros.
Maya fazia círculos no ar enquanto gesticulava, sabendo do fascínio que as mãos poderiam exercer.
Seduzia. Mas em Maya havia a certeza, a consciência de que era inevitável o movimento divino e pagão de cantáridas sobre o corpo.
Seus pés alcançaram os pés descalços do amigo sentado a sua frente. Dedilhou o dorso e sentiu os pêlos eriçarem devagar. Continuou subindo lentamente, tocando com a ponta dos dedos a panturrilha e a parte interna dos joelhos. Bebia seu copo de vinho e agora olhava as fotografias pregadas nas paredes. Pixinguinha, Noel, Lupicínio. Que bar era mesmo aquele?
Fechou novamente os olhos e seus pés podiam tocar todos os joelhos do mundo naquele instante. Uma espécie de onipresença da libido.
De repente, encontrou os olhos do amigo que, encarando-a, deduziam as horas seguintes, os dias seguintes, a vida depois daqueles pés.
Parou. Desceu devagar seus pés arrastando os calcanhares pelos músculos tensos do moço, sentindo as curvas. Os ossos se partiram de aflição e desejo.
Recolheu seus pés e engoliu um pouco do vinho. Molhou a boca, abriu os olhos, pagou a conta e, sem olhar para trás, voltou para casa acompanhada das sensações e do prazer de estar em si, no outro, nos outros.
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