As Mãos
Não há nada de familiar em meu corpo. Acordo e tenho que lavá-lo, vesti-lo e adequá-lo ao dia que se inicia repetidamente. Adequado, não gosto da palavra, nem do sentido a ela conferido. Detesto adequação.
Quando jovem, perguntava a minha mãe como eu estava ou parecia estar. Ela dizia que eu não estava adequada.
Inadequada! Assim sempre fui e me senti. Fui inadequada aos olhos dos outros por toda a minha vida. A intensidade não é adequada. Nasci intensa, estranha e causando estranheza. Estava decretada minha solidão.
Só a solidão me permitiu ser... E voar.
Vivi assim, aos pedaços. Vivi aos poucos a vida que compartilhei com os outros. E me assusta, ainda hoje, esse me bastar. Tem de certa forma uma arrogância involuntária misturada a uma impotência pueril. Vivi só, cercada de gente que não reconheci. Gente que não me reconheceu.
Como senti falta de me ver no outro! Falta dos espelhos, da familiaridade.
Amei muitos homens, muitas mulheres, crianças, mas não os reconheci, nem eles a mim. Amei simplesmente. Mas ainda imagino amar de tal maneira que o meu reflexo no outro faça com que eu me reconheça, e alivie nossos pesos.
Estranheza foi o que conheci nesse meu corpo encomendado, recomendado por vezes. Doce, lascivo. Liso, rugoso.
E chorei só. Lágrimas que desprezaram leitos e confidentes. Lágrimas sem redenção ou súplica. Lágrimas na minha solidão natural.
Alinhavava a minha existência, costurada ao tronco, aos membros, a cabeça.
Uma aula de anatomia, a isso se resumia minha vida conhecida.
Ensaiei os primeiros passos, sem jamais caminhar corretamente, sem graça. Um albatroz desajeitado se arrastando pelo convés. Demorei a perceber minhas asas e o céu que se abria dentro do meu peito só.
Ensaiei o olhar, mas foi turvo por toda a paisagem. Não sabia usar nada que meu corpo carregava. Não sabia possuir um corpo.
Insisti e adestrei minhas mãos, mas resistiram independentes, e viveram à minha revelia. Minhas mãos tentaram, mas pareciam não alcançar a altura dos meus vôos, dos meus azuis.
Eu acordava no meio da noite e me assustava ao me deparar com elas ali, isoladas, sob o travesseiro ou pousadas sobre meu coração. Minhas mãos sempre me afrontaram, causando estranhamento, esperanças e temores. Por vezes me socorreram. Alongaram-se, retraíram, se esconderam... Mãos que me afagaram e a outros também. Mas viveram uma vida que assisti fascinada, como se eu fora uma convidada.
Eu era uma convidada do meu corpo.
Fui emprestada ás minhas mãos. Quando elas descansavam, me libertavam e eu podia enfim voar. Travamos uma batalha por toda a vida sem compreendermos quem éramos. Em meio a nossos conflitos,por vezes minhas mãos se uniam em oração, e nos aproximávamos por um momento.
Hoje, ao deixar o convés para trás e os portos no passado, ganhei o céu, o azul, afrontei os limbos e pude percebe que minha alma morava em minhas mãos, reunidas num amálgama sobrenatural.
Sem peso me reconciliei com meu corpo peregrino, e agradeci as memórias encantadas das minhas mãos. Lisas, enrugadas, macias e lascivas.
E quando vislumbrei minha última janela, minhas mãos abriram-se, delicadas, soberanas, feito asas.
Parti da solidão daquele corpo.
( ... )
Ilustração: Sumiê- Caminhos-Adriana Florence
2 comentários:
Dri, é impressionante como você enxerga poesia nas coisas que as pessoas "normais" acabam nem notando, na correria do SIMPLES VIVER ou, em muitos casos, no atribulado SOBREVIVER.
Parabéns por ter essa ALMA de artista! Beijos.
Eduardo Kanashiro.
Obrigada meu amigo querido. Tive a sorte de encontrar espelhos generosos... como vc e Cris; assim, nos olhos de vcs, pude me perceber melhor. Afeto faz a alma da gente aparecer!
Bj Bom
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