Translate

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Livro "Anáguas"- Adriana Florence

Olhos Celestes



Mantenho meus olhos celestes e a Branca de Neve, que vive no "Jardim dos Espíritos", adormecida na caixa de vidro.
Vamos todos acordar um dia.

Não perdi um, mas dois sapatinhos de cristal.
Também, de nada valiam; caminho melhor com os pés nus.
Cortei minhas tranças num verso, mas permaneci no balcão.
Vamos todos acordar um dia.
 
De Bela e adormecida nada tenho.
Minha alma segue acordada e meu corpo dono de mim,
Pesado, sem graça, também permanece assim.

Tento fazê-lo invisível, transparente.
 Fazê-lo todo e sem fim.
Vamos todos acordar um dia.

O beijo dos príncipes jamais me encantou.
Prefiro gente de verdade, cobertas por suas almas.
Cortantes, francas, frágeis.

Gente que pode atravessar todas as pontes,
Morar em copas de árvores.
Beber água de rio, pegar trens sem destino.
Almas capazes de morar em si, de morar em mim, de morar em gavetas.
Vamos todos acordar um dia.

Não me recordo mais dos bosques que percorri, nem sei quantos lobos encontrei; tristes e perdidos.
Mas ainda assim carrego maçãs e esperanças.
Espalho migalhas de pão, mas sei que não vou retornar. Não pelos mesmos caminhos, quero conhecer os novos.
Caminhos do não voltar.
Vamos todos acordar um dia

Perdi o medo do espelho.
Atravessei o espelho. Minha imagem se perdeu.
Só no outro tenho a semelhança e a diferença.
Só posso me ver se ao outro também.
E espero.


Não espero mais Ulisses.
Nem os santos, nem os homens, nem os puros; nem espero os mitos cujos falos lancinantes falam às línguas do alto dos castelos.
Sei do mar, do céu. Sei, sobretudo, do poder da minha imaginação.
Sei do destino dos Ulisses.

Vou pulando as soleiras da "Casa das Sombras".
Vou abrindo portas, descobrindo as janelas.
Vou alcançando os crepúsculos, vou encantando as serpentes.
Vou mentindo lucidez enquanto vivo no sonho, num substrato de névoa.
Num tempo sem tempo, com urgência, mas sem pressa. No meu transe consciente.
Uso os relógios, mas não os sirvo.
Uso meu corpo, mas não o sirvo.
Sou serva de mim somente.
Para os outros só minhas dúvidas são grandes. Por eles finjo que não sei, minto que não sou. E o mundo fica igual e fácil.
Sou quase perversa nessa farsa coloquial. Nesse disfarce diário do tempo atual.
Não há arrogância ou sabedoria, quem dera fosse. Há uma simplicidade sobre as coisas mais complexas e um não saber que me faz sabida.
Vou deixando as minhas cascas, mas a ninguém permito ver o cerne.
Prossigo delicada, misturada à carne crua, cada vez mais nua.
Mas caminho atenta, deixo que voe a alma, perdida entre a miopia descalçada e pés que carregam grandes asas.
Vou reconhecendo meus pares na fúria dos vórtices. Túneis de ventania constante, meus dias.

Vamos todos acordar um dia.

Assim vou contando histórias; as minhas, as dos outros, só me importam os personagens, adormecidos nas peles, nos pés e nas asas.  
Deixo que o tempo reaja. Deixo que cheguem luminosas tempestades. Que a estrada se revele.
Aguardo o lampejo do céu.
Aguardo o aviso do anjo.
Espero a última travessia sobre a “ponte prateada’”.

Vamos todos acordar um dia.
 

Nenhum comentário: