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domingo, 5 de setembro de 2010

Espia Só...


Primeira parte-O presépio

-- Espia só...

A voz de meu avô soava alta e tomava conta de mim. Arrebatava-me de todas as maneiras.
Meu avô esteve presente por toda a minha vida, mesmo muito tempo depois dele ter partido. Eu tinha 11 anos e foi minha primeira perda, das muitas que, sem desconfiar, ainda teria.

Meu avô era jovem, sempre foi jovem. Usava terno e gravata, mesmo na intimidade. Passava as noites acordado fazendo cálculos matemáticos complicados e escrevendo frases ou poemas sem conclusão ou finalidade. Aprendi com ele a não ter pressa, mas urgência, sempre, e jamais ter a necessidade de concluir.
Nariz adunco, calva elegante e grossos óculos escuros. Acho que nunca vi meu avô sem óculos. Mesmo que o céu estivesse aberto e claro, carregava um guarda chuva negro. Os sapatos de verniz ou couro brilhantes eram de cadarços. Dizia que o ato de amarrar os sapatos era o primeiro que tornava um homem independente para a vida inteira. Então, amarrava os seus, e lépido feito corisco, cumpria uma agenda quase imaginária que era composta pelas visitas médicas aos enfermos nas fazendas e paradas estratégicas nos pontos de encontro da cidadezinha, tão pequena para aquele homem. Lamento até os dias de hoje que meu avô tenha sido anônimo para tantas outras crianças. Toda criança deveria conhecer ou ter um avô feito o meu.

O carro acelerou. Minhas malas acomodadas no banco de trás, faziam mais volume no meu coração que no espaço minúsculo daquele fusquinha prateado.

 Deixava para trás um presépio.
A cidade pequena e coberta por fina neblina cabia na cerração dos meus olhos.
( ... )


Ilustração: A partida- Adriana Florence




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