A moça olha o relógio, o corpo, o céu nublado e sem viço. Céu de chuvinha fina e gelada: um véu. É sábado. Acabou de sair de um longo banho de imersão perfumado. Vestiu lingerie de seda preta, esfregou almíscar atrás dos joelhos, nos pulsos, nas curvas da coxa. Acendeu todas as velas da casa. Passou um batom leve e contornou os cílios de negro. Olhos de Egito. O rosto tinha rumores dos vapores do banho. Rosto de infância.
Abriu uma garrafa de vinho tinto e olhou demoradamente os reflexos violáceos sob a luz da chama. O corpo ainda guarda a fadiga da semana e os olhos lutam para recuperar o brilho habitual. secretária eletrônica as muitas chamadas e recados; afinal, era sábado. Mas ela insistiu numa solidão necessária após tantos dias cercada de gente, de apelos e solicitações. Havia preparado crepes, depois de descobrir o mel de flores silvestres deixado por um cavalheiro como presente. Havia esperança naquele pote de mel, naquele gesto delicado do moço que encantava abelhas, e moças.
A música foi escolhida com prazer. Dançou pela sala com os braços abertos e passos leves. Parou ao pé da escada fazendo uma mesura. Tinha ares de bailarina e gestos das divas de antigamente. Sufista perdida entre divindades sem pátria.
Cobriu o abajur com um lenço franjado. Abriu um livro de poemas. Leu em voz alta. O som da própria voz lambeu as paredes e, de repente, os ares se encheram das cores de Clarice e se agitaram. O eco ampliou a solidão voluntária. Sentiu desejo incontrolável de dividir as sensações e o corpo, banhado, com outro corpo.
O telefone tocou e uma voz do outro lado, terna e morna, fez com que repensasse o programa da noite: prometera-se uma noite de sábado só.
Rendeu-se aos apelos da pele e deixou-se seduzir, sem muita certeza se havia de fato um convite.
Vestiu-se, mas manteve a renda negra sob o vestido florido.
Calçou os sapatos de salto, com tiras trançadas sobre os tornozelos; achava sensual jamais tirá-los. Sapatos de cama, ela chamava. O bumbum parecia mais bonito quando andava na ponta dos pés sobre aqueles saltos altíssimos. As pernas mais torneadas e a postura mais altiva.
Entrou no carro e seguiu seus instintos, errando os caminhos. Sempre errava.
Parou em frente à casa amarela de portão azul colonial. Casa estranha... Checou o endereço, franzindo os olhos escuros. Estava correto.
Subiu os degraus que levavam ao quarto.
Ninguém havia aberto a porta da frente para recebê-la, entrou com incerteza e parou por um instante, vasculhando sua memória recente em busca de uma frase ou insinuação que lhe assegurassem o convite. Nada emergiu e a sensação era de que havia centenas de pequenas borboletas em torno dos pensamentos. Flanou com leveza e em minutos não sentia mais os pés, o corpo. Só havia um prazer percorrendo a pele, e foi ele, o prazer e aquela imensa alegria súbita, gratuita, que a levaram escada acima até a porta do quarto; estava entreaberta.
Ouviu a voz agradável e clara chamando seu nome e, de repente, o corpo ganhou peso, formas e as borboletas migraram numa espécie de motim. A voz ganhou identidade.
Entrou.
O quarto estava à meia luz e, sobre a cama grande, uma tapeçaria de brocados dourados tomava conta do ambiente refletindo a pouca luminosidade do abajur.
Ele estava sentado na cadeira em frente à escrivaninha de caneleira, repleta de pequenas gavetas. O quarto tinha o aroma daquela madeira escura, do suor adocicado, dos livros que se abarrotavam nas prateleiras. Havia livros por todos os lados e o cheiro do papel se mistura aos outros odores criando uma atmosfera densa e sensual. Ele não era jovem, não era velho, não tinha idade.
Nada mais excitante do que alguém de pensamento ágil, coração distante e mãos presentes. Ele escrevia.
Encostada no umbral da porta, ficou por instantes olhando a cena e perdendo novamente o peso. Era como fazer parte dos contos e romances que ele escrevia.
Sentiu-se mais alta, mais bonita, mais importante.
Sentiu seu sexo, escorregando as mãos sob o vestido.
Naquele momento pensou que se não fossem para a cama, talvez, sentissem mais prazer. Não queria que o desejo fosse um espectro, morto pelo sexo consumado.
Desejo consumido pelo ato.
Enquanto desejo, era gesto invisível; após a ação, morria inerte sob sussurros, suores, debaixo da dança ritmada do leito.
Queria parar o tempo com as mesmas mãos que tocavam a vulva. Queria aquela cena quente e bem guardada, só pra ela.
Ela não o conhecia: trocara minutos de prosa e olhares numa festa vazia.
Não parecia tão lisonjeiro que prestassem atenção um no outro. Nada havia de melhor a fazer naquela festa.
Entretanto, os dias transcorridos construíram torres e pontes e a imaginação desenhou as cenas. De repente o telefonema e a curiosidade, tamanha, que se apossou dela.
Dele ela conhecia os contos, os livros... A fama de circunspeto e distante. Mais nada.
Ficou um bom tempo observando o corpo dele, nu, debruçado sobre o teclado. Os dedos correndo rápidos sobre as letras, sobre as idéias, sobre o tempo. Os dedos correndo rápidos sobre ela, sem tocá-la.
Ele fazia o tempo parar. Enamorou-se, de repente, daquele “Senhor do Tempo”.
Ele parou por um momento, olhou por sobre os ombros e chamou-a novamente.
Caminhou na direção dele.
Caminhou por toda a madrugada na direção dele.
...e o corpo se inclinou levemente fazendo os contornos do nariz e do queixo. A barba cerrada e dura arranhou seu rosto, mas era bom, gostava da sensação de ficar com marcas dele por toda a pele.
Arrastou-se sobre as costas e deslizou mãos, pés, língua, seios, vulva; mapeando o corpo dele sem cerimônia.
A noite atravessou os corpos, cortante, e ressuscitou todos os fantasmas.
O desejo foi poupado, pois que não havia conclusão, só mais caminhos.
No final da caminhada nada de vultos sombrios gargalhando sobre os corpos exaustos.
No final da caminhada sua alma sobre a cama descansava.
Não havia convidados.
Foi embora acompanhada pelo tempo que ele fez parar como um presente.
O tempo ficou no seu corpo, no seu sexo, nos seus gostos misturados.
Ela esperou pelas invasões consentidas e as madrugadas ficaram povoadas,repletas de perfumes e significados, mesmo quando permanecia só.
Ilustração: Amantes- Adriana Florence
2 comentários:
Dri querida,
intensa como sempre!!!
"Foi embora acompanhada pelo tempo que ele fez parar como um presente" ... esta frase tem um sentido ENORME para mim... o tempo como presente...
Parabéns!!!
Beijo e se cuide!
Dra Cris.
Cris, querida!!! Obrigada. Esse tempo/presente vc tem me ajudado, e muito, a esticar com qualidade.
Bj Bom,
Dri
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