Deitada de bruços sobre os lençóis de percal muito branco; acompanho com os olhos a fileira de delicados bordados do barrado, florzinhas miúdas descoloridas pelo sabão e pela vida. Lembro-me do dia em que foram comprados, num momento entusiasmado de minha mãe, que sonhava discreta com meu enxoval de casamento. Sonhava calada naquela casa das sombras, na casa pintada de azul. Sonhava a cerimônia e o buquê de jasmins. Mas eu já sabia meu destino — havia, muito antes, consultado meus oráculos e, debaixo da jabuticabeira seca, agonizante, do quintal da casa azul, observei um dia, era à tardinha, as sombras que se formavam. Aprendi à sombra da jabuticabeira da infância, e vi luz. O halo que provinha do amor resistente, alerta, das mulheres da casa azul.
Aprendi com a velha árvore ressequida, que mesmo agonizando à morte insistia em filtrar a luz.
A bruxa de mim, que já me pertencia, sobrevoou meus pensamentos debaixo da casa azul e me fez refém do encantado. Encantado seria então o mundo em que eu viveria. E as Moiras que eu pressentia, sopraram ventos molhados, mandaram girar a roca: tramou-se meu tecido. Não houve marcha, nem pajens. Não houve chuva de arroz. Mas houve o primeiro amor. A chuva que molhou minha vida desabou daquelas sombras, da sombra da casa azul. Sem desabrigar-me, choveu forte minha primeira chuva. Não alagou meus sonhos, não afogou minha fé — molhou meu tecido fino, fez minha alma transbordar. Sonhei cada dia do temporal, e o que restou do entusiasmo de minha mãe foi aquele vestígio de enxoval, que fito, longamente, em devaneios, deitada sobre o branco do percal.
Colhi as flores do barrado, colori, distribuí. Afrontei todos os brancos. Enfrentei. Enfeitei. Branco virou princípio. Mergulhei e trouxe pelas mãos minhas paletas. Trouxe a artista que morava no invisível, acometida pela brancura.
Branco pode ser ausência, branco pode ser presença. Existência. Escolhi transparência.
Exuberância sobre o cauim.
Os jasmins jamais me abandonariam. No colo, atrás dos joelhos, nos vasos e nas janelas, as flores que se abrem, as que me fecham.
Sempre há jasmins. Jasmim virou jardim. Secreto jardim.
As sombras viraram casas. Aprendi a morar em mim, nos outros.
A casa azul não mais existe, virou memória, esquecimento, encantamento.
A bruxa ainda ensaia poções, embalada pela ventania, e o os perfumes das flores, das saias, das especiarias, trazem-me de volta a luz, o amor.
Reúnem-me todos os dias às mulheres da casa azul.
Ilustração: Sumie-Série Memórias da Infância- Adriana Florence
Nenhum comentário:
Postar um comentário